Pé-de-Cachimbo

iê-iê-iês from the crypt

sábado, agosto 27, 2005

 
o intuito deste post é servir de lixeira agregadora de uma pá de posts abandonados, logo, não reparem no seu tom reticente ao extremo...

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Minha ida pra Arcoverde foi do caralho. Pense num estado de paz de espírito. Mesmo estando na companhia (e hospedado na casa) de um sociólogo - que geralmente desperta meus sentimentos de culpa relacionados à alienação política com seu discurso.

Ir para Arcoverde é voltar ao meu "ponto de origem", ao lugar onde nasci, apesar de não ter morado lá (fui para Pesqueira depois de nascer). Talvez o principal sentimento que tenho com relação à cidade é o de filho separado da mãe logo após o nascimento, afinal, depois desse episódio, só voltei lá umas três vezes e muito rapidamente. Só ano passado tomei a atitude de ir com o simples intuito de conhecer a cidade - coisa que acabou não acontecendo, pois tínhamos apenas uma tarde para a tarefa e acabamos indo para um único "ponto turístico" (a Serra das Varas).

Já agora, fui na sexta e só voltei na segunda de madrugada. Deu pra conhecer um pouco mais da cidade que estava com um clima bastante agradável (até mais ou menos sete da noite - depois dessa hora, os músculos enrijeciam de tanto frio).

Nosso quartel general foi o bar de Zaca, o Cantoria (segundo Pacheco, uma espécie de "Garagem" arcoverdense), onde fomos tão bem tratados que até agora pensamos numa forma de recompensa à altura quando ele e Andréa (sua esposa) vierem aqui pela capital.

O nosso plano inicial de ir no sábado até a Serra do Ororubá (Pesqueira) participar da Festa de Tamain foi pelos ares devido às informações que nos chegaram de que o caminho pra lá estava impraticável, devido aos estragos causados pela chuva. Fora que, ficamos sabendo também que a tal festa não ia ser lá na aldeia dos xucurus e sim no vilarejo de Cimbres, de frente pra igreja. Acabamos morgando esse programa - que foi devidamente substituído por rolês em vários "points" da cidade e, no dia seguinte, um passeio deveras revigorante até o Vale do Catimbau.

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Pois bem, adentrando novamente a terra da obliquidade loquaz das palavras, aqui estou pra dar algumas breves opiniões sobre alguns filmes que vi graças ao "pacotão pague 1 e leve 2 DVD's" do carnaval do Domingão.

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E:\Doves - 2005 - Some Cities\05 - The Storm.mp3
Doves é bonitinho. Não é das bandas que eu mais gosto não, mas são legais. Fazem direitinho o dever de casa. O problema é que "direitinho" demais. Até demais...
Bem, talvez eu esteja falando isto por ter escutado essa música após algumas do animal colletctive / panda bear


E:\Jennifer Gentle - 2005 - Valende\02 I Do Dream You 1.mp3
Porra... desse jeito o Of MOntreal vai perder o pódio de "banda sixtie predileta" do Pé-de-Cachimbo. Muito boa, velho. Parece até uma nova "Lucifer Sam" tamanho o "senso quadrinístico" da coisa...

E:\Bloc Party - 2005 - Silent Alarm\11 - Bloc Party - Luno.mp3
Essa é a tal banda hype do negócio. Mas dá logo pra perceber que algum fundamento o tal do hype tem. Apesar dessa música lembrar-me um supergrass na fase mais antiga.

E:\Dungen - 2004 - Ta Det Lugnt\05 - dungen - ta det lugnt.mp3
Caralho. Essa parece o Of Montreal fazendo pop japonês. Muito massa. Bem, mister Tiago Barros, o senhor estava mais do que certo... agradei-me bastante do rapaz Dungen. O bichinho também é mais barulhento.
[atualmente tô percebendo claramente um certo afastamento dos sons mais porradeiros... coisa que é inversamente proporcional ao gosto do nosso amigo Marditiu, que costuma ter momentos de ternura com o extreme-grindcore... hehehe

E:\Low - 2001 - Things We Lost In The Fire\11 - closer.mp3
Muito bom esse tal Low. Escroto é como tem muito de Neil Young no lance e eu só ter percebido agora. Bem, ouso dizer até que o Low é um Neil Jung post-rocker. Bem, o diferencial dos caras creio que justamente seja o contraponto dos dois vocais - o grave e soturno com o agudo vibrante e solar. O Iron and Wine (acho que eles vieram antes do Low) tem algo bem parecido com essa sonoridade.

E:\Bloc Party - 2005 - Silent Alarm\07 - Bloc Party - This Modern Love.mp3
Essa chega a emocionar-me de alguma forma. Muito anos oitenta realmente. Porra... às vezes me pergunto se

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Muita coisa do "mundo rock" chegou fria aos meus ouvidos. Falo de uma frieza no sentido de contrapô-la ao impacto inicial - arque-típico do início de adolescência - que o rock provocou em meu sistema nervoso. Daí em diante, diriam alguns reacionários, aquela substância sonora faria entortar o crescimento do "eu-plantinha" que existe em mim. Afinal, ele poderia ter tido um crescimento mais "harmônico" ao som de um Kenny G da vida...
(só se for pra ter virado um pé de goiaba... bah)
O fato é que o sujeito vai se acostumando com o tal do desvio e muitas vezes ele se torna apenas mais um vício... o vício de desviar.

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Hoje fui no estúdio de Márcio (o Boca 48) ver se havia esquecido um cabo de guitarra por lá. Dos ensaios com a galera d'O Foguete - que dexei de comentar por aqui não por algum motivo especial mas sim porque já não tenho o mesmo "traquejo blogueiro" dantes adquirido. Isso de blogue, ao meu ver tem muito a ver com a necessidade de interpretação Quem tava ensaiando por lá, pra minha surpresa, foi a galera da Profiterólis, banda que costuma dividir opiniões - geralmente algo entre "admiradores confessos" e "depreciadores declarados"...

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D:\Documentos\DSPO\MP3\Músicas Novas\jorge ben (samba esquema novo 1963)(bom)\jorge ben (samba esquema novo 1963) - 12 - por causa de você.mp3
Itamaracá - 1988.

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acho que as máquinas definitivamente não querem que eu trabalhe. elas parecem sempre parar, dar pane, mau-contato, incompatibilidades de corrente...

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tô jogando GTA aqui no computador muito chapado e me pergunto: pra onde é que o mundo tá indo ? pra onde EU estou indo ?

acho que estou desesperado com o destino que estou trilhando. o qual considero única opção.

e é como se não houvesse outra opção diante de algo como a morte.

diante dela qualquer tentativa de otimismo se desnuda.

num tem esse que aceite bem a morte não.

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D:\Documentos\DSPO\MP3\Panda Bear - Panda Bear\01 inside a great stadium and a running race.mp3
Traçado de Kraftwerk no som sintetizado e robótico.

D:\Documentos\DSPO\MP3\Panda Bear - Panda Bear\02 mich mit einer mond.mp3
Batida meio Gipsy Kings de violão juntamente com percussão que parece feita no corpo desse instrumento. duas direções dentro da mesma música. uma fria e robótica, a outra quente, de carne e osso.

D:\Documentos\DSPO\MP3\Panda Bear - Panda Bear\11 we built a robot.mp3
- Pancadão lo-fi dos inferno, quem vai?
Fuderosíssimo. O que algum membro do Animal Colective fez mais perto do pop. Parece até algo do New Order. Só que mais psicodélico, evidentemente. Eu sinceramente fico com o Panda Bear. Mesmo sozinho... além de que o cara ainda não virou cópia de si mesmo - como certas bandas fizeram, hein?!?!... rám, rám


D:\Documentos\DSPO\MP3\Panda Bear - Panda Bear\13 a lover once can no longer now be a friend.mp3
Isso é bem Pink Floyd no começo, mas sem Syd Barret... O timbre do piano é bem legal - parece ser elétrico... Verdadeira "caixinha de música psicótica"...

D:\Documentos\DSPO\MP3\Panda Bear - Panda Bear\14 ohne titel.mp3
Uma mutação de
D:\Documentos\DSPO\MP3\Panda Bear - Panda Bear\10 a musician and a filmmaker.mp3
Minha predileta do disco.

* A pretensão dessa "resenha" não é nada "objetivo" demais. Não tento resenhar pra ser melhor ou pior do que fulano. Também não tento alcançar um "nível" que se distancie do "senso comum". Como li hoje num livro de Paulo Freire (sim, eu comecei a ler "Pedagogia do Oprimido"), que, em seu prefácio (um "apanhado" das idéias autor) expunha o método do velho recifese, de como ele se propunha a "recriar a realidade" através da descontrução / reconstrução simbólica (a tal da dialética sim senhor), a começar no próprio processo de alfabetização... alguém decerto julga tudo isso "papo de comunista", mas na verdade meu intuito é dizer que a música ajuda a recriar a realidade (a meu ver nem sempre de forma positiva, mas sempre de forma "verdadeira")...
Pelo menos comigo funciona assim.
Logo, não pensem que esse blog é sobre música pop.

Na verdade é...
mas de forma secundária.

seria a música minha religião?
- Quais são teus valores?

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Kraftwerk - Die Mensch-Maschine - 01 - Die Roboter.ogg
"Kling Klang"
hehehe. isso é o que tá escrito no "comment" do arquivo. pra mim o kraftwerk é realmente essa coisa onomatopéica: acima de tudo uma sensação quase física com os sons. a música dos caras é daçante pacaráleo a despeito de sua "retidão robótica" e essa onda recente de "coverizações" do kraftwerk das formas mais inusitadas possíveis só vem demonstrar como eles se entranharam como influência na música popular do século XX - e ainda estão perfeitamente em forma em pleno século XXI.

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D:\Documentos\DSPO\MP3\herbie_hancock___mwandishi__the_complete_warner_bros. recordings (disc 1)\1-02 fat mama.mp3
levante essa bunda da cadeira e vá dançar loucamente pela sala. por que não agora mesmo ? right now !

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D:\Documentos\DSPO\MP3\tramavirtual\postrock\seychelles_1 - La Muerte.mp3
eu particularmente não gostei dos trejeitos do vocalista não. Mas também não é nada que comprometa a ponto de tirar o brilho da banda - que tem um ótimo trabalho "climático" de guitarras. Se garantem.

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E:\02. Yes Sir, No Sir.mp3
troço mongol da porra. mongolismo psicodélico medieval. caralho...

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NÓIAAAAAAAAAAAA
FAZGIBÓIAUMAMINHOCA

Essas sirenes todas são interiores. Elas estão dentro de mim. Apesar dO barulho repercutir lá de fora.

carros com vidro fumê.
as cores ricas da tarde repercutindo neste teclado e fazendo pano de fundo natural pro monitor.
e minha suspeita de que em algum lugar próximo
um crime acaba de ser cometido.

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sonho 30.05.05
meu pai e eu numa estrada. em postos de gasolina e hotéis de beira de estrada. e no mar. havia um mar.

meu pai.

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D:\Documentos\DSPO\MP3\Vários\the vaselines - the way of the vaselines - 01 - son of a gun.mp3
ramones country. uma aparente contradição que na verdade, mostra-se uma relação de parentesco, de "concordância". Por sinal, é aquele mesmo mongolismo kinks de "Yes Sr., No Sr.". Purezemplo.

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Vontade de mexer no template da vida.

quarta-feira, agosto 24, 2005

 
O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO

Arquivo em português (formato: PDF)


pra quem quiser dar uma cavucada nos espectros juvenis.

quinta-feira, agosto 18, 2005

 
Esse conto foi sugestão de Gabriel... Achei-o fuderoso.

O homem de cabeça de papelão
João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

? Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

? Mas não quero ser nada disso.

? Então quer ser vagabundo?

? Quero trabalhar.

? Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando ? é vagabundo.

? Eu não acho.

? É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre ? qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

? É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

? A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

? Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

? É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

? Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

? É da tua má cabeça, meu filho.

? Qual?

? A tua cabeça não regula.

? Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

? Só caso se o senhor tomar juízo.

? Mas que chama você juízo?

? Ser como os mais.

? Então você gosta de mim?

? E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

? Traz algum relógio?

? Trago a minha cabeça.

? Ah! Desarranjada?

? Dizem-no, pelo menos.

? Em todo o caso, há tempo?

? Desde que nasci.

? Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

? E o senhor fica com a minha cabeça?

? Se a deixar.

? Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

? Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

? Regula?

? É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República ? a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

? Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

? Há tempos deixei aqui uma cabeça.

? Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

? Ah! fez Antenor.

? Tem-se dado bem com a de papelão? ? Assim...

? As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

? Mas a minha cabeça?

? Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

? Consertou-a?

? Não.

? Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

? Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

? Faça o obséquio de embrulhá-la.

? Não a coloca?

? Não.

? V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

? Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

? Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

? Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável ? um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.


João do Rio foi o pseudônimo mais constante de João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor e jornalista carioca, que também usou como disfarce os nomes de Godofredo de Alencar, José Antônio José, Joe, Claude, etc., nada ou quase nada escrevendo e publicando sob o seu próprio nome. Foi redator de jornais importantes, como "O País" e "Gazeta de Notícias", fundando depois um diário que dirigiu até o dia de sua morte, "A Pátria". Contista romancista, autor teatral (condição em que exerceu a presidência da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito na vaga de Guimarães Passos. Entre outros livros deixou "Dentro da Noite", "A Mulher e os Espelhos", "Crônicas e Frases de Godofredo de Alencar", "A Alma Encantadora das Ruas", "Vida Vertiginosa", "Os Dias Passam", "As religiões no Rio" e "Rosário da Ilusão", que contém como primeiro conto a admirável sátira "O homem da cabeça de papelão". Nascido no Rio de Janeiro a 05 de agosto de 1881, faleceu repentinamente na mesma cidade a 23 de junho de 1321.

O texto acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira ? Rio de Janeiro, 1957, pág. 196

terça-feira, agosto 16, 2005

 
talvez a explicação mais abrangente para o aumento vertiginoso de blogs abandonados seja o advento daquele troço que começa com "or" e termina com "kut"...
embora pense que, no meu caso, o buraco é mais embaixo.

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